A saga dos pioneiros na criação da maior regata de oceano da América Latina

Veleiro com mastro quebrado, em 88 / Foto: YCI / Divulgação

Ilhabela - A evolução da vela oceânica no Brasil passa obrigatoriamente pelo Yacht Club de Ilhabela (YCI) e seus pioneiros associados, que não imaginavam a dimensão que uma disputa de monotipos e um passatempo a bordo entre Santos e Ilhabela, antes mesmo dos anos 70, viria tomar até adquirir o prestígio necessário para se tornar a maior competição da América Latina e se consagrar definitivamente como Rolex Ilhabela Sailing Week e chegar à 40a. edição em 2013. 
 
O YCI não passava de uma garagem à beira mar para abrigar apenas algumas embarcações. A maioria, pequenas lanchas. "Por volta de 1970 comprei em Santos, o Galeão, um veleiro com casco de madeira e velas de algodão e trouxe-o para a Ilha. Até aquele momento só existiam o Brisa e o Moleza em Ilhabela. Passamos a sair juntos para velejar". Com o "pega-pega" entre os veleiros, começava a se formar, para o empresário e velejador Nelson Bastos, a primeira ideia de uma competição à vela no litoral norte de São Paulo. 
 
A vontade de velejar com mais eficiência levou Nelson a trocar de barco. Comprou o Toya, modelo Ranger 23, seu primeiro veleiro construído em fibra e com velas sintéticas. "No Carnaval de 1973, juntamos meia dúzia de barcos em Santos para velejarmos até Ilhabela. Não tinha rating nem nada. Era mais uma brincadeira". Também vieram à Ilhabela o Áries, comandado por João Zarif, o Rajada, do Mario Franco e o Fuga, do Luigi Frankhental. 
 
A inspiração para os precursores do YCI criarem uma disputa que viria a compor a própria história do charmoso clube, veio também das primeiras competições de monotipo organizadas no litoral norte pelo Grêmio de Vela de Ilhabela (GVI), em parceria com a Federação de Vela do Estado de São Paulo (Fevesp). Na época, o YCI tinha suas atividades voltadas para a pesca oceânica. 
 
A dedicação dos "velejadores de fim de semana" na década de 70, conduzia o esporte para um rumo promissor. Carlos Eduardo Maia, também empresário e sucessor de Nelson Bastos como capitão de vela do YCI, teve a visão de aproveitar as regatas como instrumento de integração entre os velejadores e a população de Ilhabela. "Não queríamos um evento restrito aos associados. Era preciso levar a movimentação para fora do clube e envolver a comunidade. Mostrar aos caiçaras o que é a vela para que a cidade fosse beneficiada pelas atividades náuticas", enfatiza Maia. 
 
A Origem - Em 1969, a habitual seca de meio de ano na Represa de Guarapiranga motivou alguns associados a levarem seus monotipos para Ilhabela. A iniciativa partiu de dirigentes do Yacht Club de Santo Amaro (YCSA) e de outros clubes à margem da represa, como Carlos Cyrillo, Mario Volkoff, Geraldo Junqueira e Oscar Wekerle e contou com o apoio da Prefeitua de Ilhabela. A competição foi um sucesso apesar das dificuldades na logística, mas a próxima disputa só ocorreria quatro anos mais tarde. A família Biekarck trouxe da Represa de Guarapiranga cerca de 15 veleiros da classe Optimist, além de acessórios necessários e cedeu todo o material aos meninos caiçaras de Ilhabela. Curiosos com a novidade, puderam também velejar e adquirir o gosto pelo esporte. 
 
No final de 1972 chegaram ao Brasil os primeiros barcos de Optimist e uma pequena flotilha se formou na Guarapiranga. O objetivo era treinar para o Sul-Americano da classe em Buenos Aires, no ano seguinte. No mês de julho, os pais decidiram que seria mais produtivo se os jovens velejadores treinassem no oceano e levaram os meninos para Ilhabela. Como ficaram apenas observando fora da água, combinaram de trazer seus próprios monotipos no ano seguinte para também velejar, a exemplo das crianças, e não apenas passar vontade. Foram para a raia, veleiros das classes Snipe, Pinguim e Hobie Cat. Era realizada assim, em 1974, a simbólica 1ª Edição da Semana de Vela de Ilhabela, nome que viria a ser oficialmente adotado em 1981, na oitava edição do evento.
 
Na carona dos monotipos, na mesma época começaram a ser disputadas as Regatas Julinas, uma confraternização de velejadores de oceano acostumados às férias dos meses de julho em Ilhabela com suas famílias. "Em 1981 as regatas de oceano passaram a abrir e fechar a Semana de Vela, até então restrita aos monotipos. A partir de 1983 optamos por organizar as duas classes em competições com datas distintas para que nenhuma corresse o risco de ficar esvaziada", relembra Carlos Eduardo Maia, que em 1977 disputou pela primeira vez a Regata Julina, com seu Zodiac IV, modelo Guanabara 23. 
 
Evolução - A década de 80 trouxe à Semana de Vela de Ilhabela um desenvolvimento marcante. A evolução pode ser constatada a cada ano. No ano 82 marcou a chegada das jurias especializadas. Árbitros internacionais como Nelson Ilha, Dionísio Sulzbeck, Pedro Paulo Petersen, Boris Ostergreen e Cláudio Ferraz garantiram a credibilidade da disputa. Passaram a ser utilizados aplicativos específicos para o gerenciamento das regatas e foram instituídos o tripulante mirim e a tripulação feminina com o objetivo de democratizar a competição. 
 
Nas duas primeiras edições, 1981 e 82, com 11 e 15 barcos respectivamente, a classe única, oceano, agrupava todos os inscritos. Em 1983, 19 veleiros foram divididos em duas classes: cruzeiro e regata. O ano marca o primeiro dos nove títulos de Eduardo Souza Ramos, o maior vencedor nos 40 anos de Rolex Ilhabela Sailing Week (1983/1984/1991/2002/2003/2004/2008/2010/2012). Souza Ramos correu com o Tiki, na classe Regata.. No ano seguinte, pela primeira vez foram adotadas regras específicas, com os 26 veleiros inscritos em duas classes: IOR e RHC. 
 
No final da década, outras experiências e inovações fundamentais vieram para reforçar o rumo na evolução do evento. A competição recebeu pela primeira vez na história o incentivo de um patrocinador, American Express. Torben Grael ganhou o Troféu North Sails, em 1985, a bordo do Saci. 
 
A competição passou a contar com o apoio da Marinha do Brasil, o que legitimou as regatas e assegurou aos velejadores a autorização para competir no Canal de São Sebastião, priorizando-se a segurança dos participantes conforme as regras de navegação adotadas até hoje. 
 
"A primeira regata de percurso, dentro do canal, em 1988 foi uma festa para turistas e população. Quem estava na orla, nos bares, praias e restaurantes parou para admirar e fotografar o espetáculo das velas. A Associação Comercial se envolveu com o evento e fizemos a chegada da regata no píer da Vila, anunciando em alto-falantes o nome do barco e da tripulação para todos os que cruzavam a linha de chegada" revive, emocionado, o capitão de vela, Maia, que se inspirou no modelo de chegada de uma regata que disputou no Havaí. 
 
A partir de 88, abertura oficial da Semana de Vela ganhou imponência, com direito a uma solenidade aberta ao público na praça da Vila. Discurso, banda de música, fogos de artifício e o hasteamento da bandeira brasileira tornaram-se parte integrante do evento. O Yacht Club de Ilhabela se equipava com telex, telefoto e uma estação meteorológica para facilitar o trabalho da mídia e oferecer subsídios aos velejadores. As regatas passaram a ser acompanhadas por uma Comissão de Protestos dentro da água para assegurar mais lisura às disputas. 
 
No início da década de 90, o número de inscrições na Semana de Vela rompeu pela primeira vez o a casa de três algarismos, chegando à marca histórica de 104 barcos. O próximo salto centenário viria em 2009, estabelecendo o recorde de 205 veleiros inscritos. Hoje, por segurança e garantia de qualidade da competição existe um limite de participantes determinado pela Organização.
 
Os anos 90 marcaram também a profissionalização do evento com a chegada de importantes patrocinadores. Eduardo Souza Ramos não é o maior vencedor como um dos principais parceiros do evento. O primeiro incentivo veio com a SR Veículos, rede de concessionários da Ford, e se consolidou até esta edição com a marca Mitsubishi. Mais tarde veio o Bradesco e, a partir de 2007, a Rolex dá nome à competição, a exemplo do que acontece com as principais regatas de oceano do circuito mundial. 
 
A Regata Alcatrazes - Marinha do Brasil, idealizada pela Rádio Eldorado em 1996, foi incluída no programa de regatas da Semana de Vela a partir de 1999. Com 60 milhas náuticas (111 km), tornou-se a mais longa e exigente prova da competição. O recorde oficial pertence ao veleiro argentino Cusi 5, com o tempo de 6h12m29, em 2009. Porém, em 2005, o veleiro Brasil 1, comandado por Torben Grael, fez sua estreia no mar justamente nesta regata e marcou o recorde extra oficial de 6h00min18.
 
Descontração - O improviso, qualidade geralmente comum ao perfil dos velejadores, marcou momentos inesquecíveis nas participações do capitão Maia. "Até 1990, as tripulações dos barcos maiores retornavam da regata e deixavam o clube. Queríamos manter o clima de confraternização. Pensamos em oferecer algo que todos gostam e que não precisasse pagar. Optamos pela cerveja. Como não tínhamos onde gelar, improvisamos uma velha canoa de madeira abandonada para armazenarmos tudo dentro. Até hoje os velejadores aguardam ansiosos pelo momento da "canoa de cerveja", que transformou-se numa tradição em todo o Brasil. 
 
Em 1977, Maia também viveu uma situação inusitada durante a Regata Julina. Três tripulações queriam competir, mas não havia juiz e nem equipamento para se organizar a largada. "Chamamos o subgerente do YCI, o Agnaldo, e ensinamos na hora para ele quais eram os principais procedimentos. Faltava ainda um apito ou algo que pudesse emitir um sinal sonoro. Entregamos ao Agnaldo uma "Doze" (espingarda calibre 12), com cano cortado e o tiro de largada para os três barcos, Zodiac IV, Toya e Balli-Hai, foi ouvido em toda a Ilha. 
 
Os veleiros Fast surgem na raia - Em 1980, numa viagem de negócios à Inglaterra, Nelson Bastos viu num jornal de Londres o anúncio da venda de uma produtora de barcos. Foi ao estaleiro, comprou os moldes e os acessórios e enviou tudo para o Brasil. Instalou o material em um galpão na marginal do Rio Pinheiros, em São Paulo, e montou uma equipe de produção. Assim começavam a serem fabricados os famosos veleiros Fast 345, modelo de referência na vela oceânica por vários anos. 
 
"Minha ideia era de fazer barcos apenas para os amigos, mas o diretor da Revista Mar, Ernani Paciornik, publicou alguns anúncios e quando percebi havia 70 ou 80 encomendas. Lançamos também o Fast 410 e o veleiro de 50 pés", recorda Nelson Bastos que já acumulava o cargo de "capitão de vela" do YCI. "Chegamos, inclusive, a ceder um Fast 23 para os irmãos Torben e Lars Grael correrem em Ilhabela. 
 
O entusiasta velejador considera que a preocupação com a divulgação e a qualidade do evento foi decisiva para atrair novas tripulações. "Ainda não tínhamos muita gente nas regatas, mas nos preocupávamos em oferecer a melhor organização possível. Fazíamos pesquisa para sabermos como melhorar no ano seguinte" revela Nelson que entregava um questionário a cada velejador para avaliar o nível de satisfação. "Logo vieram os cariocas, os argentinos, e os tripulantes de outras regiões. A divulgação da Rádio Eldorado também contribuiu muito para consolidar o evento". 
 
Tensão a bordo - Antes de se adotar os procedimentos que regem o evento até hoje, Nelson Bastos viveu um momento de pura adrenalina no extremo norte de Ilhabela. "Em 1985 eu estava no Revanche e perdemos o mastro numa rajada de sudeste com mais de 50 nós (quase 100 km/h), em meio à chegada de uma tempestade. A tripulação era experiente, sabia o que fazer e por isso não aceitamos reboque. Foi muito tenso e demoramos umas quatro horas para resgatar o equipamento, o mastro e tudo que caiu no mar". 
 
Quando conseguiu pisar novamente no píer do YCI, já era madrugada. Nelson foi recepcionado por um sargento da Marinha ávido em querer saber por que a tripulação não pediu e nem aceitou socorro. "O interrogatório foi extenso e tive de alegar que a antena do rádio de bordo também caíra no mar". 
 
Um clube especial - Modesto, Nelson Bastos faz questão de compartilhar com outros ex-diretores de Vela do YCI, a condução do processo que deu a largada para o atual formato da competição. O incansável velejador lembra de Raul Sulzbacher e de Carlos Eduardo Maia, outros dois pioneiros na vela oceânica em Ilhabela na década de 70. O filho de Raul, Marcos Sulzbacher, é o criador do primeiro logotipo da Semana de Vela, um desenho azul e amarelo de várias ondas e uma vela. 
 
Nelson Bastos velejou até 1998. Seu último veleiro foi o Força Maior. Em 2013 trouxe seu prestígio à 40ª Rolex Ilhabela Sailing Week como convidado especial da organização e pode relembrar o que faz do Yacht Club de Ilhabela um ponto de encontro único para a comunidade da vela. "Este lugar é espetacular. Tem clima agradável e condições ótimas para se velejar em pleno o inverno. Você vê todo mundo se divertindo com alegria. Enquanto velejadores fantásticos como Torben e Robert correm para ganhar, outros vêm competir para depois tomar cerveja. Aqui todos têm a mesma importância. Isso é Ilhabela!", resume com um carinho especial nas palavras o velho-lobo da vela oceânica brasileira.
 

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